Arquivo mensal: setembro 2014

Adeus, doutor Tardelli. Tome juízo.

Fonte: http://thegreenstudy.com/2013/07/

As despedidas são momentos importantes. É o momento de rever nossa vida. Pensar no que deu certo. No que deu errado, também. É memória, mas também é projeto. O procurador de justiça Roberto Tardelli, conhecido como ‘o promotor do caso Suzane Richthofen’, aposentou-se. Continuará dando palestras e iniciará sua carreira na advocacia ainda jovem, aos 53 anos. Para juntar as duas pontas dessa vida, escreveu uma carta de despedida que causou comoção e dividiu opiniões. O que Alarico Celestino tem a dizer sobre esse documento? Vejamos.

Você acompanhou a repercussão que teve a aposentadoria precoce do Dr. Roberto Tardelli do Ministério Público do Estado de São Paulo?

Li alguma coisa a respeito.

E aí?

E aí o quê?

O que achou?

Não achei nada.

Pô, Celestino. Esse caso merece a sua atenção…

Merece?

Sim, merece. A carta de despedida que o promotor assinou está sendo muito comentada. As opiniões estão divididas. Alguns acham-no um gênio; outros, apenas um imbecil. E você, quais foram suas impressões ao ler a tal carta?

Para ser sincero, eu preferiria não falar sobre esse assunto.

Eu insisto.

Esse cabra já foi tarde. Não percamos tempo com essa figura.

Você chegou a ler a carta de despedida?

Tive o desprazer.

Pois bem. Eu vou ler alguns trechos e gostaria de ouvir seus comentários.

Tudo bem. Se você insiste. Não vou ficar resistindo. Avante.

Antes de começar, diga: por que o pessoal gostou tanto dessa carta?

É que atualmente estamos vivendo uma escassez de bons humoristas. Essa é uma parte da questão. Por outro lado, no país do carnaval, as pessoas se sentem muito reprimidas pelas formalidades da vida. Não sabem relaxar na hora certa. Ou somos muito sérios o tempo todo ou somos brincalhões o tempo todo. Então quando aparece um procurador de justiça dizendo que quer ouvir ‘mais axé’ as pessoas acham o máximo. É o palhaço que todo mundo gostaria de ter em casa.

Comecemos, então: “Estou indo, peguei meu boné. Quero dizer a cada um que foram os melhores trinta anos de minha vida esses que passei no MP.”

O cabra tem 53 anos. Diz que os últimos trinta anos foram os melhores trinta anos de sua vida. Deve ter razão. Ninguém pode ser feliz de verdade antes dos 23 anos.

“Ter sido promotor de justiça foi um grande barato. Descobri e continuo descobrindo que podemos melhorar a vida das pessoas, que somos protagonistas e seremos protagonistas da construção republicana e democrática do Brasil. Não somos apenas indispensáveis, somos parte do DNA de uma nação que ainda se percebe e ainda se conhece.”

Barato. Gíria dos anos oitenta. Cafona, convenhamos. Grande barato. Uma grandessíssima cafonice. Esse negócio de melhorar a vida das pessoas é meio paternalista. Podemos melhorar a vida das pessoas mais próximas. No máximo. Eu tenho de mim para mim que a função do promotor de justiça é fazer a coisa certa. Buscar a solução justa para os processos. O que melhora a vida das pessoas é religião, é a família, são os amigos, é comida, ar puro, dinheiro, saúde e sexo. No casamento.

“Ao contrário do que gostaria de dizer, se pudesse, não faria tudo da mesma forma que fiz.”

Esse é o núcleo da coisa-toda. Ora, quem nunca errou? Se fosse possível refazer a vida, quem é que não mudaria alguma coisa? Isso não dá camisa a ninguém. Mas vamos lá.

“Teria a mão menos pesada quando a tive pesada (faz tempo isso), soltaria mais a alma e a voz e prenderia menos pessoas.”

Pô. Ele fará isso agora, que é advogado. É natural que mude de opinião. O que é estranho é a projeção dessa nova ideia para o seu passado. Ele fala como se a mão de promotor não pudesse ser pesada. Quem tem que colocar mão leve na cabeça de vagabundo é a mãe dele, ora. A mãe do vagabundo, entendam.

“Seria menos formal nas solenidades protocolares.”

Não se reprima, não se reprima. O problema é que as pessoas só percebem muito tarde que foram reprimidas. Que seja então menos formal nas solenidades protocolares. Dance durante o Hino Nacional. Como quem dança músicas dos anos 60 numa festa de casamento. Foi convidado para ser paraninfo de uma turma de formandos? Vá de gravata do Frajola amarrada na testa. Compareça às audiências com uma camisa ‘keep calm & deixa que eu pego leve’. Só não precisa ficar dando pista de que foi reprimido a vida toda. Acho chato a pessoa ficar se expondo assim.

“Ouviria mais axé.”

Desnecessário, isso. Até porque axé não é música que se escute, meu rei. Sabe para que serve o axé? Para maluco pular carnaval. Tonto, pegando mulher. Nessa idade, não recomendo. “Ouviria mais axé”… Ora, ora. Imagino o Dr. Tardelli no seu Corolla ouvindo Ivete Sangalo, Chicletão, mil e uma noites de amor com você. Ex-promotor chicleteiro. É só o que faltava nesse país…

“Beberia mais vinho e menos cerveja.”

Que interesse pode ter a dieta etílica de um promotor? Nenhuma, penso. Adiante.

“Dirigiria mais cuidadosamente meu carro e, quando fosse aumentar a música, eu o fizesse com maior determinação, para espalhar mais João Gilberto pela cidade.”

Um homem eclético, sem dúvida. Antes espalhar João Gilberto que axé. Prova de que é possível ser sensato até na hora de cometer sandices. Quem não vai gostar disso é o João Gilberto. E que história é essa de ‘aumentar o volume do carro com maior determinação’? Já disse que esse cara é reprimido. Era contido até para aumentar o volume do som do carro.

“Não precisaria ser autoridade o tempo todo e faria questão de me sentar na arquibancada. Nem por decreto, por nada nesse mundo subiria nos malditos elevadores privativos. Jamais.”

Eu não vou comentar essa passagem como gostaria, porque é criar atrito desnecessário. Só digo que é a parte mais triste de toda a história. Como será uma autoridade em pleno exercício do cargo na intimidade com a esposa, tomando banho, fazendo o dois, contando piada? É verdade, doutor, você realmente não precisava ser autoridade o tempo todo. Pena que não o avisaram antes!

“Na audiência, chamaria a todos pelo nome, inclusive e principalmente o réu e a vítima. Chamar as pessoas pelo nome lhes dá a humanidade que essas expressões consagradas retiram: réu e vítima, sem nome ou rosto e procuraria deles me lembrar, pois que sempre existem coincidências: passeando no parque, encontro o réu e seu filhinho. Ele, um pai exemplar e amava mesmo o filho, deficiente mental profundo; num dia de fúria, arrancou a orelha de um balconista.”

É uma pena que tenha descoberto isso tão tarde. Só agora, que aposentou. Que os réus violentos amam seus filhos. Doutor Tardelli, em que mundo você vivia, meu camarada?

“Escreveria de forma menos catastrófica e atenderia a todos.”

Isso é bom. Escrever de forma catastrófica é patético. Não atender a todos é coisa de gente desalmada. O homem está arrependido. E aparentemente tem razões para estar.

Essa é boa: “Serviria café à tia do café.”

E ele jura que a tia do café iria adorar essa ideia. Como se ela não tivesse mais o que fazer na vida.

“Deveríamos usar menos ternos, porque nada há de terno em nosso terno preto, vetusto, de risca de giz.”

Questão de ponto de vista. Há algo de terno numa camiseta polo? Há algo de terno em uma calça jeans, em um tênis? Há algo de terno em uma barriga peluda à mostra? Ninguém usa terno pela sua ternura. Bobagem. Passo.

Olha isso, Alarico: “Ignoraria corregedores e procuradores, fossem de justiça, fossem os gerais, fossem aqueles que usassem o brega e horroroso anel de grau.”

O anel de grau é mesmo brega. Concordo. Agora: por que ignorar corregedores e procuradores de justiça? Não entendi. Isso é birra de adolescente revoltado com os pais. É irreverência vã. Tome tento. Veja. O doutor é um brasileiro-padrão. Classe média universitária. Não é? Um homem sem graça que ficou conhecido porque foi sorteado para trabalhar no caso daquela menina retardada e infeliz. Teve seus cinco minutos de fama. Mas como, comparados com ele, todos os outros promotores-falantes têm ainda menos sal, ele está aí. Dando seus palpites. E sendo ouvido por todos. Eu falei que não valia a pena mexer com isso.

Já estamos caminhando para o final, Celestino. Acalme-se. Veja mais essa: “Não respeitaria o silêncio grave dos corredores forenses. Talvez distribuísse apitos.”

Eu gostei disso. Tipo: vou distribuir apitos nos corredores do Fórum e escrever essa história para provar que sou sublime.

“Escreveria mais coisas da vida e menos coisas da lei nos processos ou inquéritos.”

Quem faz isso merece o meu respeito. Mas tem que saber fazer. Sem direito alternativo ou ‘direito achado na rua’.

“Citaria menos autores, principalmente aqueles que todos citam, os consensuais, quase sempre burocratas e que conseguem acertar o fácil. Iria atrás daqueles que prezassem a imprecisão, os que cultuassem a dúvida e nunca, nunca, permitiria que certezas se instalassem em minha mesa de trabalho.”

O problema desse jovem é que ele viveu uma vida de certezas absolutas. Coitado. Que bom que mudou. Antes tarde. Os próximos trinta anos prometem ser muito bons. Melhores que os últimos.

“Jogaria fora, poria no lixo, os carimbos. Diria apenas, ok e seguiria o filme. Temos carimbos demais, carimbamos demais.”

Essa história de distribuir apitos nos corredores do Fórum e de jogar carimbos no lixo foi inspirada na música Sem Mandamentos, do Oswaldo Montenegro. Tenho certeza. Que é uma música boa, poética. Hoje eu quero que os poetas dancem pela rua / pra escrever a música sem pretensão / Eu quero que as buzinas toquem flauta-doce / e que triunfe a força da imaginação. Na poesia, muito lindo. Nos processos, talvez não funcione bem. Quem trata bandido com poesia é assistente social e psicólogo. Promotor e polícia têm que tratá-los é com a lei. São pagos para isso. Ora vejam.

E essa: “Nunca os suportei e talvez os suportasse ainda menos, aqueles que dizem que vivemos uma Guerra Contra O Crime ou aqueles super-heróis, cuja missão a eles passada na Sala de Justiça os fizessem proteger a sociedade ordeira. Não existe guerra alguma e estamos prendendo irmãos iguais e sociedade alguma é ordeira, principalmente a que espanca crianças, mata homossexuais, mulheres e tem sua polícia a executar pretos e pobres na periferia.”

Rapaz, todo mundo está vendo. Ele não sabe bem de onde veio esse discurso. E também não sabe para onde vai. Ele ouviu e assimilou. Como é bonitinho, sai repetindo. Sem comentários. Passo.

“Afundaria em um lago distante quem dissesse que a lei confere direitos demais aos criminosos. Pregaria na testa de quem dissesse Humanos Direitos um adesivo: estúpido.”

Mas que mudança, hein. Bom. Se ele não acredita que haja pessoas mais ou menos corretas, direitas. Não posso fazer nada. Essa raiva contra a correção é niilismo. O doutor está amargurado com a vida. Evidentemente.

“Abraçaria mais as mulheres do busão.”

Veja você o tipo físico desse cabra. O que você acha que as senhoras pensariam de um rapaz assim ‘abraçando mulheres no busão’? Um louco clínico. Do tipo: o médico mandou não contrariar.

“Defenderia o meio ambiente e o consumidor.”

Caramba. Ridículo. Simplesmente. Passo.

“Não leria a Veja.”

Desde que Caetano Veloso a proferiu do alto de sua vã intelectualidade, essa frase é, pretensamente, o maior sinal de independência de que o brasileiro bocó é capaz. Não leio a Veja. E daí? Grande coisa. Não lê a Veja. Mas lê a Carta Capital, a Caras e a Caros Amigos. Faça bom proveito. E não me encha a paciência.

“Teria medo de superpoderes e os guardaria onde estivessem protegidos de mim.”

Ele tem razão para temer superpoderes. Aquela história de ‘afundar em um lago distante’ quem pensa diferente dele não pegou bem. Nenhum lugar é suficientemente seguro para colocar os superpoderes longe desse homem.

“Um processo muito peculiar e um caso único que agitou o país me jogou para fora do que até então houvera vivido e me fez em contato com a população, de forma tão viva que eu deixei de ser apenas um promotor de justiça e me tornei um falador e contador de história e aprumador de realidades, algumas vividas outras nem tanto.”

Tornar-se um contador de histórias é uma coisa muito boa. Tornar-se um falador é que não presta. Como fala besteira, meu Deus!

“Ter me tornado conhecido das pessoas será uma das coisas que jamais pagarei ao Ministério Público e a esse ofício de Promotor de Justiça.”

Esse é o maior desejo da maioria dos brasileiros: tornar-se famoso. Estar nos braços da massa. Povo pequeno. Sigamos.

“Andei pelo Brasil e descobri um país que nunca imaginei existir, seja por seus contrastes, seja por sua pujança, pelos seus defeitos e pelos seus encantos, mais encantos que defeitos.”

É o que dá ficar a vida inteira no eixo São Paulo-Paris.

“Pude externar minha opinião, que é apenas minha, mas que foi ouvida mais do que eu supunha.”

Opinião é como bunda. E essa bunda aí está meio caidinha. Seja como for, o doutor certamente foi ouvido mais do que merecia.

“Falei e falei no sertão, nas caatingas e nos gerais. Em Sampa e no meu estado de São Paulo, penso que fui a quase todas as faculdades. As que ainda não fui, que me aguardem.”

Deus me livre! Consiga a agenda desse doutor para mim. Para eu não correr o risco de trombar com ele por aí.

“Sempre que preciso de um vinho, encontro comparsaria à altura. Há trinta anos que não bebo sozinho e, vamos lá, admitam, isso é um feito.”

Grande feito. Não sei como ainda não criaram uma comenda para essa façanha.

“Estamos condenatórios e sei que haverá quem, chegando até aqui, ao ler esse texto há de pensar que eu surtei e que não era mesmo de confiança.”

Acertou na mosca.

“Uma nação não se constrói com condenações em série, pelo contrário.”

‘Pelo contrário’ quer dizer: ‘um país se constrói com absolvições em série’. Sem comentários. Um fanfarrão.

“Gostaria de beijar a todos, abraçar a todos. Quem não quiser, não precisa me abraçar porque eu abraço sozinho, pronto.”

Eu não conheço esse doutor. Mas se o conhecesse provavelmente o abraçaria e diria em seus ouvidos: ‘tome juízo, doutor’. Juízo.

Toalhas

Você reutiliza as toalhas de hotel para ajudar o meio ambiente, Alarico?

Grande bobagem. Os hotéis agora estão vindo com essa. É que na ponta do lápis dá uma grana preta ficar lavando toalha de marmanjo todos os dias. Aí vêm com essa de plantar árvores, de responsabilidade ambiental, é sua escolha, pendure a toalha. Não tem vergonha na cara, esse povo.

Então você nunca reutiliza as toalhas de hotel?

Eu não falei isso. Eu não gosto de toalha limpinha todo dia. Toalha tem que ter o meu cheiro. Eu penduro a toalha no banheiro. Mas não é para preservar o meio ambiente, não. É questão de gosto.

E o Greenpeace, Alarico, tem o seu apoio? Você já contribuiu para a manutenção dessa entidade?

Jamais dei ou darei um centavo para esses adoradores de baleias. Você viu o que eles fizeram agora em São Paulo? Para protestar contra o atraso nas obras de extensão do metrô, eles fizeram uma propaganda governamental falsa. É duro isso, viu. Esse povo está precisando de uma enxada.

Daqui a cem anos

E o pessoal que busca a justiça? Olho com atenção os jeitos, a testa cheia de rugas, as esperanças desse povo. A cara de preocupação. Os processos quase não andam. Estão todos na pilha esperando a Iraneide voltar das férias em Fortaleza. Ninguém faz o serviço da Iraneide, que é um serviço problemático. Onde tem problema, amigo, ninguém quer mexer. Que só piora. Vejo o povo no balcão de atendimento, com a senha nas mãos. Esperam uma resposta. Um dia a resposta vem. Com a ajuda de Nossa Senhora. Mas antes tem que marcar a audiência. Com a pauta cheia, só no ano que vem. Meu Deus! Ano que vem? Não chegará nunca. O processo está com o juiz. Conclusos. Um senhor no corredor diz orgulhoso: eu esperei quinze anos por uma resposta da justiça. ‘Quinze anos’. A voz com o peso de uma espera longa e incerta. O recurso foi julgado, na voz passiva. Demorou tanto. Não está cem por cento, porém qualquer fim de espera refresca. O povo se contenta com muito pouco. E eu fico matutando. Daqui a cem anos, nenhum desses infelizes estará aqui para contar a história. Daqui a cem anos, todos estarão mortos. Irrevogavelmente mortos. Como o rei da Pérsia está morto. Que alguém chore por eles. Esses pobres desgraçados que buscam a justiça entre gemidos.

Velhos sucessos

O que dizer dos artistas que continuam cantando, trinta anos depois, as músicas do início da carreira?

Cada um tem a liberdade de cantar e de não cantar o que quiser. Desde que não seja na minha casa. Não tenho nada com isso.

Mas o que você pensa a respeito dessas pessoas?

O que eu penso a respeito? Acho deprimente. Vamos ser sinceros. Você não acha? Veja só o Branco Mello, por exemplo. O cabra é avô. Imagina só se meu avô cantasse polícia para quem precisa. É dose. Não respeitaria. Desculpa. Ficar trinta anos cantando Como uma onda no mar, Fio Maravilha e Hey Jude. Não vejo necessidade disso. Todo mundo tem mais o que fazer.

Uma senhora de 102 anos

E a senhora de 102 anos que cuida dos presos? História bonita. Há oitenta anos ela abriga, em sua casa, em Porto Alegre, RS, condenados que cumprem pena por tráfico de entorpecentes, homicídios e outras delicadezas semelhantes. A relação entre ela e os meninos é de confiança. Carinho. Lealdade. Ela provavelmente fez muito mais por esses infelizes do que três mil militantes do PSOL já sonharam em fazer juntos pelas ‘vítimas do sistema capitalista’. A melhor parte: aos 102 anos, são os presos que cuidam dela. Seu nome, Maria Ribeiro da Silva Tavares. Ela ficou viúva muito cedo, antes dos 24 anos. Resolveu então usar a herança que recebeu do pai para manter presos de alta periculosidade em sua própria casa, onde morava com o filho pequeno. Os esforços de Maria Tavares se transformaram no Patronato Lima Drumond. Que hoje tem parceria com o Estado. Abriga 76 condenados. Anjos. É assim que essa senhora incrível chama os presos que cumprem pena em sua casa. Não existem criaturas irrecuperáveis, mas métodos inadequados, diz. Grande presença.

Torre de Babel

O problema é que o sucesso subiu à cabeça. Quase sempre é assim. O mundo inteiro falava a mesma língua com as mesmas palavras. Uma turma emigrou para uma planície no país de Senaar. Ali se estabeleceram. E tiveram uma ideia infeliz. Quiseram construir uma cidade e uma torre que alcançasse o céu. Para quê, meu Deus? Aí é que está o problema. Queriam se tornar conhecidos. Não queriam se dispersar pela superfície da terra. Deus viu que aquilo não ia prestar. Decidiu acabar com a brincadeira dos caras. Resultado: espalhou gente para tudo quanto é canto da terra e confundiu a língua do povo. Surgiram os diferentes idiomas. Queria que os homens tivessem mais dificuldade de se juntar para fazer besteira. Desde então ficou claro. Que a estória de o homem querer ser Deus não dá certo.

Noé e o dilúvio

A coisa não estava boa lá por aqueles lados. Não estava mesmo. Vejam só. Deus já estava ficando por aqui com os homens. Tudo o que vive tem de terminar, pois por sua culpa a terra está cheia de crimes. Arrependeu-se de ter criado os homens. Caramba, por que é que eu fui fazer isso? Entendeu que fizera besteira. Vou dar um jeito nesse povo miserável. Mas Noé era seu amigo. Sempre conversava com Ele. Noé, faça um barco de 150 m de comprimento, 25 de largura e quinze de altura. É a sua única chance. Não tem escolha. Estabelecerei com você a minha aliança. Entrarão na arca você e os seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos. Coloque na arca também dois indivíduos de cada espécie animal. Um macho e uma fêmea, naturalmente. Ninguém mais. Não, não. Só esses. Não insista.

Missão dada, missão cumprida. Tudo arrumado, rebentaram as fontes do oceano e se abriram as comportas do Céu. Choveu sobre a Terra quarenta dias e quarenta noites. Foi o dilúvio. Purificou tudo. Quarenta dias de muita água. Vocês são capazes de imaginar? Tudo o que havia na terra firme morreu. Só ficou Noé e os que estavam com ele na arca.

Deus soprou, a água começou a baixar. Cessou a chuva do Céu. Até que a arca encalhou nos montes de Ararat. Silêncio. Noé soltou uma pomba. Ver se as águas já haviam dado lugar à terra. Nada. Esperou mais. Mandou de novo a bichinha. Então ela voltou com uma folha de oliveira no bico. Sinal de terra. Noé desceu. Deus mandou voltar tudo ao normal. Abençoou todo mundo. Crescei, multiplicai-vos e enchei a terra e dominai-a. Todos os animais da terra vos temerão e respeitarão. Deus fez então uma aliança com Noé. Prometeu que não iria mais destruir a terra daquele jeito. Sem, Cam e Jafé são os filhos de Noé. Se espalharam por toda a terra. A história a partir daqui é longa. Longa e interessante. Me acompanhem.

Sobre o criacionismo

Alarico Celestino, você é criacionista, ou um poeta?

Antes de tudo, sou uma criatura. Limitadamente, um criador. Poeta, meia-boca. Não publico mais minhas poesias. Não me diria um criacionista, mas talvez uma cria sionista (meu avô falava de um nosso ancestral, de origem judaica, que se desgarrou). E você, moça, desculpa a intromissão, é cria sionista ou revolucionista?

Revolucionista, Alarico.

Suspeitei desde o princípio.

Ainda sobre a minha identidade — inexplicavelmente polêmica

Alarico, você existe?

Que prosa é essa, dona?

É que tudo o que você escreve está tão correto, tão bonito, tão suave e bem escrito, que eu pensei: ele não existe!

Moça, fala logo o que você quer. Não precisa ficar rodeando, assim.

Ah… Não quero nada! Estou sendo sincera! Você deveria aparecer, pois escreve muito bem! Alarico Celestino é uma história, um mito, um sonho, não é?

Eu não estou entendendo do quê você está falando.

Então deixa pra lá. Eu é que devo estou sonhando! Deixa eu voltar para a realidade. Preciso preparar a janta dos meninos! Um abraço para você. Boa noite!

Eu lhe agradeço.

São demais os perigos desta vida

Na vara em que eu trabalho tem muita gente que estuda para concurso público. Aos montes. Acho que o sonho da maioria dos brasileiros é passar em um concurso e se esconder atrás dos carimbos. Ficar seguro. Sem riscos. Deus me livre. Estou aqui de passagem. Já-já eu pico a mula. Os concurseiros têm uma linguagem própria: editais, provas, títulos, informativos. São o futuro da nação. Juízes, promotores, advogados. Todos querendo uma parte nessa coisa linda que é o governo. Alguns falam em ideais. Mas o primeiro ideal de todos é o salário na conta todo santo mês. Religioso. Pontual. Independentemente do sucesso da empresa. Às vezes contribuindo, sem saber, para seu estado falimentar. Sem saber e sem se importar. Cada um no seu quadrado.

Prestar concurso hoje é uma técnica. Há alguns segredos. O caminho pode ser longo. Alguns desistem depois de tantas porteiras fechadas, depois de tantos mata-burros e encruzilhadas sem placas de identificação. Às vezes dói muito. Vejo em seus rostos. Chego a ter dó desses meninos. Coitados. Tão jovens e tão burocráticos. Tão obsessivamente ávidos por segurança. Tão anestesiados. Que tenho vontade de lhes soprar nos ouvidos. Não se esqueçam nunca: são demais os perigos desta vida.