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A vida entre os processos judiciais

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Nem todos os tribunais de justiça são feios. Os desembargadores costumam valorizar a beleza e, principalmente, investir dinheiro na construção de boas sedes. Mas e os fóruns? Os prédios dos fóruns, onde trabalham os juízes de direito, geralmente não são belos. Não são lugares bons de se passar o dia. Sem dúvida são melhor apessoados que qualquer delegacia de polícia civil — essas, sim, sucursais terrenas da casa do capeta. Ainda assim, na média, as sedes dos fóruns não costumam colaborar: têm um semblante fechado, uma energia carregada.

Embora aqui e ali, dentro das varas judiciais, haja gente feliz, e principalmente gente santa, a verdade é que lá tem muita gente infeliz, esgotada e cheia de preocupações. Mais preocupada que os próprios réus que, evidentemente, têm uma vida desgraçada. Como explicar isso? É que para a maioria dos réus o processo, o julgamento e a condenação são uma grande novidade — uma má novidade, claro, mas ainda assim uma novidade. Para os funcionários, nada ali é novidade. É tudo mais do mesmo. É mesmice. É chateação.

Por isso toda vez que você vir um fórum bonito, uma vara judicial bela e bem-energizada, toda vez que vir funcionários da justiça alegres e bem dispostos, saiba que você está diante de uma obra da graça de Deus, Aquele que não abandona Seus filhos.

A importância de ter amigos

Vocês viram que no ano passado o governador do Mato Grosso Silval Barbosa foi preso. Foi assim. A Polícia Federal cumpria mandado judicial de busca e apreensão em sua humilde residência, em Cuiabá, MT. A investigação, destinada ao Ministério Público Federal, buscava encontrar provas de sua participação em esquemas de corrupção no Estado. Não encontraram muitas provas, não. Mas encontraram na geladeira um leite de saquinho tipo C com a data de validade vencida, o ar condicionado com o filtro sem manutenção (e, em Cuiabá, isso é um problema) e uma arma de fogo com o registro com data de validade também vencida. Pelo conjunto da obra, prenderam Sua Excelência em flagrante delito.

Disso tudo mundo já sabia.

O que não sabiam até esta semana é que no dia da prisão o governador recebeu dois telefonemas de solidariedade de duas das mais altas autoridades da República. Sim, telefonaram para ele o ministro do STF Gilmar Mendes e o ministro da justiça José Eduardo Cardozo.

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Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/02/pf-intercepta-ligacao-de-bgilmar-mendes-para-investigadob-no-stf.html

Ambos começaram a ligação telefônica mais ou menos assim: ‘Governador, que confusão foi essa, meu rei?’. E prosseguiram:  Em que posso servi-lo? Vou falar com o Tóffoli. A Polícia Federal tratou você direitinho? Teve algum abuso de autoridade?

— Os meninos da Polícia Federal foram ótimos, ministro — disse o governador. O problema foi o Ministério Público. Quando eu estava prestando depoimento na Polícia Federal, chegou uma procuradora da República e falou que eu estava preso em flagrante, por recomendação do procurador-geral da República…

— Minha nossa senhora, que absurdo, que loucura, governador, não acredito etc e tal: Foi assim que os ministros se dirigiram ao governador que, no final das contas, acabou sendo preso — não por corrupção, pelo que vinha sendo investigado, mas por conta da tal arma com registro vencido.

As três melhores partes da conversa, para mim, foram: Gilmar Mendes falando ‘que absurdo’ e ‘vou falar com o Tóffoli’, José Eduardo Cardozo perguntando se os policiais foram carinhosos com o governador, e o próprio governador reclamando que o processo estava no STF por conta da prerrogativa de foro  do senador Blairo Maggi, que também estava meio enrolado na investigação.

A prisão aconteceu em 15.05.2014, mas as gravações só foram divulgadas nesta semana. Com a repercussão, o ministro Gilmar Mendes evitou comentar o assunto. Disse que telefonou ao governador por conta das ‘relações institucionais’ que com ele mantém. O ministro Cardozo disse que diante da possibilidade de ter havido abuso de autoridade era seu dever averiguar tudo direitinho junto à possível vítima.

Sei.

Agora que as gravações vieram à tona, duas coisas ficaram mais evidentes. Um: o Brasil pode não se parecer nada com uma República de verdade, mas a Justiça está conseguindo, aqui e ali, chegar a lugares que antes eram intocáveis. Dois: os governadores gostam mesmo é de ser julgados pelo Superior Tribunal de Justiça. Muito interessante.

Aviso aos ministros do STF

Todo mundo espera que o Supremo Tribunal Federal cuide de assuntos sérios. Casos de corrupção no primeiro escalão do Governo Federal, direitos e garantias fundamentais do indivíduo, direitos sociais de grande alcance. Intervenção, ações diretas de inconstitucionalidade. Grandes conflitos de interesse. Memoráveis julgamentos. De balançar os alicerces da República. Só que não. É notícia na página do Supremo Tribunal Federal que aquele egrégio sodalício julgará em breve quem pode e quem não pode entrar nos banheiros dos shopping centers. Decidirá se homem que pensa que é mulher poderá frequentar o banheiro das damas; e se mulher que pensa que é homem poderá fazer xixi sentada no banheiro dos marmanjos. Eu não estou de brincadeira! A minha criatividade tem limites! Vejam com seus próprios olhos!

A notícia diz que ‘tratamento social condizente com identidade sexual é tema com repercussão geral’. Está na cara que nem a Assessoria de Imprensa do STF concorda com essa inominável decisão. Se não fosse assim, por que constaria da notícia que “o STF já negou a repercussão geral em outros casos relativos a indenização por danos morais em situações diversas, como inscrição indevida em cadastro de inadimplentes, negativa de cobertura por operadora de plano de saúde e espera excessiva em fila de banco”? Só que os jornalistas do STF não podem se revoltar publicamente e perguntar aos ministros ‘que porra é essa’. Então eles escreveram isso e deram o seu recado. Bem feito.

A questão é a seguinte. O que cada um acha da sua vida é problema de cada um. Certo? Eu por exemplo já acordei me achando um Machado de Assis e já dormi me achando um Miguel de Cervantes. Me achando uma belezura, a última bolacha do pacote. Mas jamais acordei menstruado ou me achando uma bela donzela. Não sei com vocês, mas o espelho sempre me garantiu um mínimo de sanidade. Além disso, estava sempre lá, às vezes para meu orgulho, às vezes para minha vergonha, um pedaço de mim balançando entre minhas pernas. Se por acaso já passou pela minha cabeça entrar no banheiro feminino para fazer a barba ou para sujar o vaso sanitário com meu incontrolável jato? Isso só passaria pela minha cabeça se eu estivesse de sacanagem… Sim, porque, como disse aquela menina, tudo isso é uma puta falta de sacanagem.

Segue um aviso aos ministros do STF: se algum de vocês permitirem que marmanjo peludo frequente o banheiro das moças ou que alguma fêmea doce, porém mal-resolvida, fique dando volta no banheiro dos machos olhando para o lado enquanto a gente, em pé, tira a água do joelho, eu vou cismar que sou da sua família e vou reivindicar o direito de me sentar na sua, na ‘nossa’, mesa de jantar e de privar de sua insubstituível companhia até me cansar. Vou bater o pé em que fui abandonado na infância enquanto você fazia política para ser ministro do Supremo, que sofri alienação parental, que fui vítima de discussões terríveis entre você e mamãe e que por culpa de vocês ainda hoje careço de atenção e carinho. Porque a minha identidade familiar eu mesmo construo. Quem decide a que família pertenço sou eu. É direito inalienável. Questão de identidade. Direitos humanos, subjetividade, quero meus direitos etc e tal. Afinal de contas, ninguém pode violar meu direito de acesso a vinhos franceses e a chocolates suíços servidos na mesa da casa dos ministros do STF — meus parentes, a depender da decisão daquele sodalício. Está avisado. Preparem a minha cadeira ao lado de vocês. Porque além de parente eu estou, aos poucos e com muito esforço, construindo a minha identidade de filho predileto.

Juízes, para a justiça

Daqui do balcão eu fico observando o mundo e as pessoas que passam. E por aqui passam muitos juízes, para lá e para cá. Parece que fizeram a mesma escola. São muito parecidos. Com exceção da meia dúzia de neocomunistas malucos do Juízes para a Democracia, são todos conservadores. Por que será que é assim? O tribunal paira como uma sombra, pesada sombra, sobre esse jardim pouco arejado que são os gabinetes dos juízes. Sim. Para entrar, só com hora marcada e muita solenidade. Além disso, há também o peso do martelo. Porque é fácil ser progressista quando o que você faz nunca dá em nada. É fácil ser progressista de passeata. Trabalhador de ONG com carteira assinada. Agitador profissional. Movimentar a moçada e fazer confusão não são lá atividades que estimulam um suficiente senso de responsabilidade. Deixemos que eles cuidem de seus DCEs e das calouradas. A Pablo o que é de Pablo. Porém, se sua profissão é fazer a coisa certa, distribuir a justiça no maior contexto de cada caso, aí, meus amigos, meus inimigos, não adianta bancar o revoltadinho salvador-da-pátria. Não vai dar certo. Vai azedar o leite.

Daqui a cem anos

E o pessoal que busca a justiça? Olho com atenção os jeitos, a testa cheia de rugas, as esperanças desse povo. A cara de preocupação. Os processos quase não andam. Estão todos na pilha esperando a Iraneide voltar das férias em Fortaleza. Ninguém faz o serviço da Iraneide, que é um serviço problemático. Onde tem problema, amigo, ninguém quer mexer. Que só piora. Vejo o povo no balcão de atendimento, com a senha nas mãos. Esperam uma resposta. Um dia a resposta vem. Com a ajuda de Nossa Senhora. Mas antes tem que marcar a audiência. Com a pauta cheia, só no ano que vem. Meu Deus! Ano que vem? Não chegará nunca. O processo está com o juiz. Conclusos. Um senhor no corredor diz orgulhoso: eu esperei quinze anos por uma resposta da justiça. ‘Quinze anos’. A voz com o peso de uma espera longa e incerta. O recurso foi julgado, na voz passiva. Demorou tanto. Não está cem por cento, porém qualquer fim de espera refresca. O povo se contenta com muito pouco. E eu fico matutando. Daqui a cem anos, nenhum desses infelizes estará aqui para contar a história. Daqui a cem anos, todos estarão mortos. Irrevogavelmente mortos. Como o rei da Pérsia está morto. Que alguém chore por eles. Esses pobres desgraçados que buscam a justiça entre gemidos.

São demais os perigos desta vida

Na vara em que eu trabalho tem muita gente que estuda para concurso público. Aos montes. Acho que o sonho da maioria dos brasileiros é passar em um concurso e se esconder atrás dos carimbos. Ficar seguro. Sem riscos. Deus me livre. Estou aqui de passagem. Já-já eu pico a mula. Os concurseiros têm uma linguagem própria: editais, provas, títulos, informativos. São o futuro da nação. Juízes, promotores, advogados. Todos querendo uma parte nessa coisa linda que é o governo. Alguns falam em ideais. Mas o primeiro ideal de todos é o salário na conta todo santo mês. Religioso. Pontual. Independentemente do sucesso da empresa. Às vezes contribuindo, sem saber, para seu estado falimentar. Sem saber e sem se importar. Cada um no seu quadrado.

Prestar concurso hoje é uma técnica. Há alguns segredos. O caminho pode ser longo. Alguns desistem depois de tantas porteiras fechadas, depois de tantos mata-burros e encruzilhadas sem placas de identificação. Às vezes dói muito. Vejo em seus rostos. Chego a ter dó desses meninos. Coitados. Tão jovens e tão burocráticos. Tão obsessivamente ávidos por segurança. Tão anestesiados. Que tenho vontade de lhes soprar nos ouvidos. Não se esqueçam nunca: são demais os perigos desta vida.

Um pouco de ordem

Hoje eu passei uma boa meia hora consertando uma bagunça que a Iraneide fez num processo. Mandaram o processo para o xerox. Os adolescentes aprendizes só trabalham com os olhos e os dedos no celular. Para quê tanto dedo, meu Deus, pergunta meu coração. Já falei que tem que cortar isso. Não me ouvem. “Manha vamu nos 4 e kero ve vc fala p ela q so vc fz o trab. E nao adianta faltar. Sua vaca. Coloke se nu seu lugar”. Resultado do colóquio adolescente: o processo voltou todo bagunçado da sala de xerox. E a anta da Iraneide nem para consertar. Como estava, meteu tudo na bailarina. Cada um no seu quadrado, disse. Não suporto ver essas coisas. Deixa que eu conserto. Passa aqui essa bagunça, Iraneide.

De cabeça baixa, vi passando pelo corredor dois promotores de justiça. Indo falar com o juiz. Vocês sabem que juiz não gosta de promotor. Mas acaba recebendo. Conversa, ri. Até confidencia. Mas no fundo não gosta. Indefere prisão preventiva. Não quer saber de modinha, não. “Temos que seguir a jurisprudência do tribunal”. Lá fora, a briga continua: “Ve si si encherga, sua coisa. So pq fz o trab sozinha qr ganha $. Iso eh hipocrizia“. Problemas sendo resolvidos dentro do gabinete. A vida sendo resolvida na sala dos aprendizes. Em moto-contínuo, a vida corre. Cada um com seu método. E eu fico aqui matutando. Colocando as folhas em ordem. As folhas do processo. Porque é preciso um pouco de ordem nesse mundo.

O assunto do dia: a sensibilidade moral de uns e de outros

O assunto de hoje no trabalho foi uma conversa telefônica interceptada por ordem judicial. O caso está sob sigilo. Então não posso passar maiores detalhes, se não o juiz me corta as orelhas. Os investigados são funcionários de um órgão de arrecadação de tributos. Estão mergulhados até o pescoço em falcatruas. O esquema é o seguinte: eles cobram de determinadas empresas 20% do valor das dívidas tributárias para ‘apagá-las’ do sistema. Se a empresa deve R$ 2 milhões, os gatunos resolvem o problema se lhes pagarem R$ 400 mil. Tudo vai para o bolso deles, entendam. Livre de impostos. O que é mais irônico.

Pois bem. Os telefonemas não param. Esse povo conversa muito. Em certo dia, uma das investigadas ficou sabendo que a corregedoria do órgão abriu um processo administrativo para investigar os indícios do esquema. Indícios, que fique claro, muito mais fracos que as evidentíssimas provas que as interceptações telefônicas têm dado à justiça. Por enquanto não é possível compartilhar essa prova. É sigilosa. Com base na abertura do processo administrativo, foi publicada uma notinha no jornal local: ‘Fiscais tributários são investigados por esquema de corrupção’. Meia dúzia de nomes foi citada.

Então. Alguns dos investigados são protestantes. E assim são conhecidos na cidade. São assíduos frequentadores dos serviços religiosos. Mas, como está evidente, estão muito pouco preocupados com os efeitos que a corrupção em si traz para a alma deles. O que os preocupou de verdade foi a publicação da notícia no jornal. Em uma das ligações telefônicas, uma senhora, com a mão imunda de tanto deletar dívidas do sistema, comentou com seu chefe: “Mas isso não poderia ter acontecido! Jamais! Essa notícia é uma tragédia. O que vão pensar da gente!? Olha, vou te falar uma coisa. Isso, pro diabo, é uma vitória!“.

Cá comigo, fiquei pensando. Não, não, moça. Escuta. Você deixe de bobagem. Essa sensibilidade moral de vocês não vale nada. Vocês têm é que passar um tempo na cadeia. Isso, sim — para o diabo todo o resto –, é uma vitória! Ora, ora. Roubar? Tudo certo… O que não pode é virar notícia. Sepulcros caiados.

Penitência depois do trabalho

Indo para casa, eu passo pela praça e comumente vejo os mendigos. Ainda que não estejam pedindo nada, eles estão lá. Sem teto. No fundo de meus pensamentos às vezes sinto raiva ao vê-los. Por que eles não procuram um emprego, ora. Penso. É melhor ser empregado ou desempregado? Eu não tenho dúvida, é melhor ser empregado. Então, evidentemente, eles estão na pior. Estão na merda. Uma merda que muitas vezes é irreversível. Quase sempre olho para aqueles mendigos e me lembro do que eu faço no trabalho. Fazer de conta que fazemos justiça é a especialidade da justiça brasileira. Quem trabalha para esse sistema caro, de enxugar gelo, de desentortar banana, terá que prestar contas a Deus. Claro, as contas serão prestadas de acordo com o grau de consciência de cada um. Mas as contas haverão de ser prestadas. Isso me dói. Dói saber-me culpado, um pouco que seja, por esse fingimento. Por isso, sempre que posso encho os mendigos famintos de pão com presunto e coca-cola.

Como está o meu trabalho

Passei em um concurso de analista judiciário do tribunal de justiça em 2009. Redijo ofícios, mandados judiciais, numero folhas de processo e, nas horas vagas, tomo cafezinho e bato papo com os meus colegas de serviço, porque ninguém é de ferro. Aliás, nunca vi tanto café na minha vida! Uma repartição pública gasta mais com pó de café do que com canetas e com resmas de papel. Há dois meses estamos trabalhando com dois juízes novos, recém-aprovados no concurso da magistratura. São rapazes esforçados. Estão bem afiados com as doutrinas jurídicas, mas ainda se atrapalham com a prática. Estão meio crus, ainda. Mas apesar de tudo vejo que têm feito um bom trabalho. Chegaram querendo ‘zerar’ o acervo da vara. Esses moços, pobres moços… Ah, se soubessem o que eu sei!