Arquivo mensal: novembro 2014

Sólon, o reformador

solon
Fonte: http://fineartamerica.com/featured/solon-ca-639-ca-559-bc-everett.html

É a vez de Sólon. Uma figura memorável. A vida de um grande homem é uma mistura indiscernível de gênio, de preparo e de oportunidade. Sólon teve um tanto de cada um dos três.

Comecemos pelo último. A oportunidade. Os comerciantes começaram a enriquecer através dos portos, começaram a comprar terras dos pequenos proprietários endividados e, assim e assim, a reivindicar espaço político – com o apoio das massas. Com o apoio das massas, entendam. A massa começou a ficar endividada. O sistema jurídico alimentava um regime de escravidão por dívidas. O bode espiatório era a nobreza. Entre a cruz e a espada. E Sólon foi lançado candidato a herói.

O homem era de família nobre, que porém em meados do século VII a.C. começou a perder dinheiro. Ele decidiu ganhar fortuna correndo o mundo vendendo azeite. Era muito curioso por conhecer novidades em outras paragens. Foi o primeiro grande poeta de Atenas. Depois que refez sua fortuna, voltou a Atenas, e era por todos considerado um espírito livre de preconceitos e um homem de fundamental honestidade. Era popular nas duas classes que travavam luta em Atenas.

Ocorreu que ele prestou um grande serviço à cidade, que na época travava com Mégara batalha pela posse da Ilha Salamina. É que quem a possuísse possuiria naturalmente Atenas, pois ela é como o ferrolho do porto ateniense. Apesar dos esforços dos atenienses, os megarenses a ocupavam. Havia um lei em Atenas proibindo se falasse da questão salamínica. Questão de preservar a honra da cidade. Aí vem o toque de gênio. Sólon se passou por louco e leu em público um poema deplorando o fato de Atenas ter entregue Salamina nas mãos dos megarenses. Os circunstantes o escutavam, de ouvido em pé. Ressabiados no começo, com pouco se deixaram arrastar pelo que ouviam. Catarse geral. Quanto desaforo nós aceitamos? Onde estávamos com a cabeça? Então deu nisso: o povo ateniense marchando sobre Salamina. Convenhamos, o cabra mereceu. A ilha foi reconquistada por Atenas. Este acontecimento. Com a estima que Sólon inspirava. Os atenienses o escolheram como arconte em 594 a.C. Transformou-se em legislador e árbitro do conflito que dividia os atenienses. O homem começou disposto a mudar muita coisa. E tinha cacife. Duvidam? Pois aguardem.

De Drácon a Sólon

Porém, pobres atenienses! Saíram do espeto e caíram na brasa. Reclamavam dia e noite dos julgamentos do Areópago? É que não sabiam o que lhes esperava no Código de Drácon, editado em 621 a.C. Foi uma legislação muito severa e francamente favorável aos nobres oligarcas. Tratou dos crimes contra o patrimônio e da servidão por dívida com penas muito pesadas. Dizia-se nas praças e nos bares de Atenas: as leis de Drácon foram redigidas com sangue!

Apesar de tudo, as leis escritas já traziam alguma segurança. Por pior que fossem, eram de todo modo previsíveis. E o terreno já estava preparado. Diante da insatisfação crescente dos mesmos insatisfeitos de sempre… A verdade é que os nobres resolveram se adiantar a um possível levante popular. E é aí que entra na história um sujeito chamado Sólon. O famoso Sólon, o homem cuja indicação agradou a gregos e baianos.

Atenas

acropolis, ao fundo
View of the Theseion with the Acropolis in the distance, por Moraites Petros (1870)

Grande Atenas! Palco de tão grandiosas cenas! Já pagou o seu tributo ao Ser dando ao mundo um homem como Sócrates. Mas há mais, com certeza.

A verdade é que a Ática, parte da Grécia onde fica Atenas, manteve-se mais ou menos em pé depois das invasões dórias. Caso raro, vocês já sabem. Os dórios chegaram invadindo tudo e deixaram como herança três séculos obscuros. Séculos de reconstrução. Em 700 a.C. a Ática era um território forte-unificado.

Atenas, ela mesma, nos séculos obscuros, também deixou o governo dos reis e assistiu à liderança de uma oligarquia. Diz-se que o último rei foi Codro, que se martirizou em 1.068 a.C. diante de uma invasão dórica. Disseram-lhe as palavras de um oráculo: vencerá a cidade cujo rei morrer primeiro. E ele disse: então seremos nós. E matou-se. Grande presença!

A partir de então Atenas foi governada pelos arcontes. Os polemarcas eram os chefes dos exércitos. Os nobres comandavam o Aerópago, tribunal para causas diversas políticas, religiosas e até mesmo jurídicas.

Porém o renascimento comercial de que já falamos estava bombando geral nas cidades gregas. Em Atenas, inclusive. E o povo olhando aqueles nobres arrotando caviar e atrasando a vida da cidade. Não dá. Começou um burburinho. Vejam Mégara, uma belezura no governo do tirano Teágenes… Até que um ateniense casado com uma filha do tirano de Mégara trama tomar o poder em Atenas. Seu nome: Cilón. Subiu para a Acrópole e deu o grito. Independência ou morte. Mas os atenienses, embora estivessem de saco cheio da oligarquia, não estavam muito animados a se submeter a um governo estrangeiro assim meio hostil. Resultado: cercaram a Acrópole e negociaram a libertação dos revoltosos com a condição de que parassem com aquela palhaçada toda. Acreditaram na palavra. Que foi descumprida. Para salvar a cidade do sacrilégio de não cumprir o que prometeram debaixo dos deuses, colocaram para correr o autor da brilhante ideia de matar os revoltosos: Megacles e sua família foram expulsos da cidade, depois de condenados por sacrilégio. Esse episódio foi chamado A maldição dos Alcmeônidas. Tudo se resolve. De alguma forma, as coisas acabam sendo resolvidas.

Depois dessa bagaça, a verdade é que os ânimos entre Mégara e Atenas se acirraram deveras. Mégara, cidade próspera. Atenas, governada por nobres que já não estavam nas graças da maioria. As decisões do Aerópago não tinham muita justiça aos olhos da população, que então começou a pedir mais segurança jurídica. Fizeram passeata e o escambau. Mas o desfecho desse movimento que pedia leis escritas mais justas e sindicáveis só veremos na próxima aula.

O jovem Moisés

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Voltemos então, cambada. Sentem-se que lá vem história. Pois Moisés foi morar no palácio do faraó. Mas ele tinha consciência de sua origem. Hebreu de sangue. E, vocês sabem, os egípcios estavam meio de saco cheio dos hebreus naquela época. Esse povo vem para nossa terra e se multiplica assustadoramente. Toma nosso espaço e nossa comida. Ou seja: havia conflitos, velados e à luz do dia, entre hebreus e egípcios. E Moisés acabou assistindo a uma briga em que um egípcio fere um hebreu. Tomou as dores do irmão de sangue. Matou o egípcio, sem dó nem piedade. Mas a coisa não ganhou tanta publicidade. Lá pelas tantas, ele tentou apartar uma briga entre dois hebreus e um deles joga na sua cara, perguntando: Quem o constituiu juiz entre nós? Acaso quer me matar como matou o egípcio? Assustado com aquela insinuação sobre o crime que cometera, Moisés fugiu para Madiã. Um dia ele acabou tendo a chance de ajudar as filhas de Jetro, ou Ragüel, um sacerdote, a se livrar de uns pastores e a dar de beber ao rebanho da família. Resultado: Jetro ofereceu-lhe em casamento sua filha Séfora, com quem teve um filho de nome Gersam. E a vida anda.

E por ali Moisés se estabeleceu. Certo dia, enquanto apascentava o rebanho do sogro, Moisés foi para além do deserto e chegou ao Horeb, onde esteve diante da famosa sarça ardente. Tire as sandálias dos seus pés, Moisés, que o lugar em que você está pisando é terra santa. E conversou com Deus, cara a cara. Deus lhe ordenou que conversasse com o faraó. Para libertar os hebreus do jugo egípcio, que vinha se tornando mais e mais forte. A princípio, Moisés duvida de sua capacidade própria. Ainda achando que as coisas são feitas por vontade de ser humano e só. E começa a argumentar e a tentar obter maiores informações sobre a incumbência: Quando me perguntarem o nome do Deus de nossos pais, o que direi? E Deus respondeu a ele: Eu sou aquele que é. O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Falou tudo, hein? Dizem que Moisés era meio gago. Por essas e por outras tinha medo de falar com o faraó. Então Deus lhe dá uma sugestão: ora, que vá com Aarão, o levita seu irmão, que lhe servirá de instrumento para passar a mensagem. E lá foram, que ordem de Deus não se discute; se cumpre.

Entraram em contato e marcaram uma primeira audiência com o faraó. Nesse primeiro encontro, o Faraó mostrou seu coração deveras endurecido. Não aceitou o pedido dos dois. Pelo contrário, para deixarem de ser bobos e atrevidos, mandou que os castigos e os serviços que caíam como um pesado fardo sobre os hebreus fossem aumentados em intensidade. Não adiantou nada Aarão transformar a vara em serpente. Não adiantou nada a serpente deles engolir a serpente do faraó. O homem não arredou o pé.

Moisés e Aarão foram falar ao faraó em nome do Senhor Deus, Aquele que é fogo devorador. O faraó fez ouvidos moucos. Não se brinca com isso. Cavou sua própria cova. Arriscou-se. Pagou um preço justo.

 

O pequeno Moisés

Moisés no Nilo

Que barulheira é essa aí fora? Ahn? Manifestação dos professores? Não estou sabendo de nada… Mas, e vocês? Vocês querem ter aula? Ou vão insistir em melhorar o mundo protestando contra a morte das baleias do Pacífico? Sim? Aula? Ok. Então vamos caminhar. Bola pra frente que atrás vem gente.

Vocês lembram que José trouxe a família para o Egito e distribuiu terras entre seus irmãos. Pois esta é a semente da ideia das doze tribos de Israel, mencionadas inclusive no Livro do Apocalipse. Pois os hebreus povoaram o Egito por cerca de quatro séculos, como quem não quer nada. Vejam, gente: são quatro séculos. Não são quatro dias. Mas a história que temos hoje, à distância, é essa. Quatro séculos de vida normal. A vida besta de Drummond. Casas entre bananeiras. Mulheres entre laranjeiras. Pomar amor cantar.

Pois durante estes quatro séculos os hebreus do Egito cresceram e se multiplicaram, como Deus ordenara. Porque ninguém é de ferro. Tornaram-se tantos que os egípcios começaram a confabular. Esse povo está crescendo demais. Vamos forçá-los a trabalhar para a gente. Além disso, para evitar que se multiplicassem ainda mais, o Faraó do momento mandou matar-lhes os filhos homens. Só que as parteiras, mulheres por natureza, não o obedeciam. Esse negócio de mulher matar criança é coisa recente. Antigamente elas tinham coração. Desobedeceram o Faraó. Grande presença, a dessas mulheres!

Desobedeceram na tora. Vocês têm noção do que isso significava naquela época? E foi por conta dessa desobediência aos poderes do grande faraó, o dono do pedaço, o que faz e acontece, que apareceu Moisés na história. Nascido por volta de 1.526 a.C., Moisés estava entre as crianças que deveriam ser mortas por ordem do Faraó. Só que não. Vejam. A mãe dele não tinha as costas quentes. Então não podia enfrentar os decretos do Faraó de cara limpa e peito aberto. Resultado: deixou o filho dentro de uma cestinha no Rio Nilo. Até que, vocês sabem. Tem sempre uma princesa bondosa por perto. E a princesa deste caso foi a filha do Faraó, que encontrou Moisés ali dentro da cesta, olhando a paisagem e pensando na vida. Como quem sabe o que está fazendo, ela se interessou pelo menino e o deixou aos cuidados da irmã e da mãe. Da irmã e da mãe do próprio Moisés, entendam. A vida tem dessas coisas. Parece até roteiro de novela, mas não é. A criança foi muito bem cuidada. Claro. Porque mãe sabe cuidar. O peito da mãe é um lugar de muita propriedade para a criança. Quando Moisés finalmente cresceu, a família, como fora prometido, o entregou à filha do Faraó, que para todos os efeitos era a sua guardiã. Lá no palácio deram-lhe o nome de Moisés. E Moisés ficou sendo sua graça. Um profeta dos maiores. Agora vamos dar um intervalo, que eu tenho que ir conversar com esse povo lá fora. Alguém tem que trabalhar nesta joça.

O capitalismo cubano

Cuba
Fonte: http://blocoson.blogspot.com.br/2014/08/buss-e-berg.html

O que você foi fazer em Cuba, Alarico?

Na verdade eu estava de viagem marcada para o México. Ia passar pelo Panamá. E pensei: por que não conhecer a ilha de Fidel? Achei que seria uma experiência sociológica interessante.

E foi?

Sim, foi. Pelo avesso. Mas foi. Um apanhado do que vi lá. Charutos, rum, mojito, casas de prostituição, internet bloqueada, prédios antigos em precário estado de conservação, muitos varais com roupas feias penduradas no centro histórico, cartazes de Fidel Castro e de Che Guevara por toda a cidade, apologias à Revolução de 1959 e uma gente muito sofrida.

E é?

É.

E o que mais marcou sua passagem por lá?

O que de mais interessante aconteceu foi um jantar clandestino servido no quintal de uma residência. Você deve saber que em Cuba não há propriedade privada propriamente falando. Por isso em geral os restaurantes cubanos são como repartições públicas brasileiras. Nada mais precisa ser dito a respeito deles.

Estávamos em Viñales, uma cidade do interior. À noite houve uma queda de energia na cidade. Buscávamos um restaurante para tirar a barriga da miséria. Mas todos estavam com as portas fechadas. Então eis que um piá nos abordou na rua, oferecendo uma refeição. Nos conduziu por becos. Ressabiado. Olhando para os lados. Entramos. As portas se fecharam, com chave. As escamas dos nossos olhos então caíram. Cerveja trincando e um frango ensopado com batatas. Maravilha! Uma experiência capitalista na ilha mais comunista do planeta. Você veja. Em qualquer lugar as pessoas acabam se virando como podem. E sempre podem. Não é?

É.

No final…

linha de trem
Fonte: http://papodetudo.wordpress.com/2010/05/18/fim-e-recomeco/

Alarico, no final tudo sempre dá certo?

Claro que não! As coisas só dão certo quando Deus quer. Não tem outra explicação. Vem o povo dizer não se preocupe, no final tudo dá certo. Uma ova. Isso só traz um alívio falso e mal-disfarçado. Só menininhas de quatorze anos e meninos de doze é que acham que as coisas darão certo independentemente do que você fizer. Se você não fizer a coisa certa não vai dar certo. Entendeu? E mesmo que você faça a coisa certa: não há garantia de nada. Porque centenas de variáveis disputam a autoria de cada acontecimento. Inexoravelmente. E a briga é boa. Então, meu amigo, não venha com essa de que no final tudo dá certo. Pára de bobagem. Vá ler um livro de história. Ou dê uma olhada no noticiário da televisão. O mundo está cheio de coisas que terminaram dando errado. Essa é a vida real.

Sobre o vício de leitura

Celestino, a questão é a seguinte. Dom Quixote, Madame Bovary e Lola Benvenutti foram decisivamente influenciados pelos livros que leram durante seu período de formação. O que os une e o que os diferencia?

Questão complicada, essa. O que os une? Uma insuficiência, talvez. Uma privação. Sentiam uma privação dentro de si. E o que lhes pareceu mais apropriado para dar vazão ao desejo de plenitude foi buscar o acesso a novas experiências nos livros. Talvez buscassem também respostas para perguntas irrespondíveis. O que os diferencia? Bom. Há aqui um terreno vasto. Dom Quixote tem o melhor coração. E tem a melhor imaginação, sem dúvida. Aquela que menores prejuízos trouxe para si e para os circunstantes. Madame Bovary é sempre Madame Bovary, um exercício literário de Flaubert. Uma moça meio sem sal que se achava no direito de viver uma grande vida. Não que tenha escolhido o marido errado. O que ela escolheu mal foi a própria vida. Uma mulher fraca, coitada. Como a Lola Benvenutti. Moças depravadas sempre houve e sempre haverá. É a vida. O que acontece com essa moça de Pirassununga, SP, é que ela usa as indicações literárias de sua mãe para justificar as suas sacanagens. Tudo bem, concordo: maldito foi quem colocou Lolita nas mãos da menina antes dos quatorze anos. Mas se ela escolheu essa vida devassa, essa vida fácil, poderia pelo menos ter deixado o velho Guimarães Rosa em paz. Precisava dizer que leu Grande Sertão? Isso depõe contra. É um anticlímax. Se tivesse lido Dom Quixote talvez tivesse se salvado. Seria apenas mais uma boa estudante de letras. Não sei o que será dessa moça. Mas acho que a literatura não pode fazer mais nada por ela. Como já disse antes, tudo o que lhe resta agora é tocar um samba argelino.

Por que eu faço o que faço

Amar o próximo é nosso dever. Mas uma natural desavença às vezes cai bem. Com pessoas pândegas a gente abstrai. Ainda que falem besteira, lembremos que não vale a pena atirar nos irmãos sem motivo. Mas com os críticos que não sabem o que dizem (ou que se sabem têm o coração marcado pela má-intenção) eu desembaraço a minha caixa de ferramentas e afino o meu instrumento. Que são meus dedos e o ritmo dos poemas latejando fundo na memória. E entro no palco das letras para espantar a doidêra e a monotonia. Certo que ouvir besteira a gente costuma ouvir calado. Acontece. Mas só que às vezes dá uma coceira sem tamanho. E vem uma vontade danada de consertar o mundo com as palavras. Porque as palavras foram feitas para consertar o mundo. Nada mais conserta o mundo. Só as palavras.

Dois homens se foram

Em uma semana foi-se Manoel de Barros. Na outra, Seu Lunga. Grandes perdas! Mas eu estou aqui, fazendo como posso. Suprindo a falta deles e espalhando poesia. E a minha crítica ácida. Aos homens de boa vontade. Com a ajuda-mestra da minha incompetência. Um tanto assim.

Bons mestres. Cada um no seu triângulo de mil lados. Dois estilos de ser. Duas dimensões, dois valores diferentes. Homens de carne e osso que se tornaram personagens da caixa de trecos de onde tiro as palavras e as coisas. Certo que em minha imaginação eles ainda vivem. A eles um abraço de seu humilde discípulo. Que Deus os receba em Seus braços misericordiosos.